sábado, 18 de abril de 2009

O sonho ( ou O ouro do nariz)


“em São Paulo, Deus é uma nota de cem”
Mano Brown

A mulher, que corria o dia atrás de dinheiro para sustentar os filhos, mostrou-se indignada com o namorado, que cheio de ciúmes e medo de perdê-la monitorava os seus passos através de perguntas capciosas e cheias de duplos sentidos.
A primeira das perguntas dizia respeito ao melhor amigo da mulher, que segundo ela dizia, era uma ótima pessoa. Um homem de cinqüenta e poucos anos, bem de vida, com carros e casas espalhados por toda a cidade e litoral e que de vez em quando a convidava para jantar. Convites estes que ela estava sempre disposta a aceitar.
Para o jovem rapaz, professor de línguas, não havia problemas em sua namorada, treze anos mais velha, ter um amigo rico, com mais idade e que demonstrava grande afeto por ela e seus filhos. O que não estava certo era o fato de os dois saírem para jantar em restaurantes chiques, os quais ele nunca poderia pagar.
Vê-la falar das grandes conquistas daquele homem mais vivido; ouvir seus planos em alugar uma das casas do amigo por um módico preço ou ouvir que aquele homem, quase desconhecido, se dispunha a fazer aulas de dança com a sua bem amada, posto que ele também, jovem e com poucas experiências emocionantes em sua vida, também gostaria de aprender a dançar, o faziam perder o controle de suas palavras, e logo vinham as perguntas maliciosas e cheias de pressupostos.
Afora isso, os olhares e ouvidos ciumentos do rapaz ouviam e viam o que queriam ver e ouvir e não entendiam aquela amizade sincera de que sua amada tanto falava. Talvez a amizade fosse até compreendia, posto que em seus contatos pelo computador o rapaz tivesse diversas amigas de verdade, que o compreendiam que o conheciam e que também estavam dispostas a jantar ou ir a bares com ele e nesses bares aprender a dançar e tornar a amizade ainda mais próxima.
Não encontrando solução para o impasse se sua vida o jovem sonhava com o dia em que poderia viver com a amada em uma casa só deles e compartilhar de uma vida toda em comum, onde não haveria, segundo ele pensava, nenhuma discórdia com relação às questões financeiras, já que seriam uma só carne e uma só conta bancária.
A solução para este problema começou a se desenhar quando o jovem teve um sonho inesperado.
Depois de vários pesadelos kafkanianos, em prisões e corredores escuros dos quais ele não conseguia fugir e dos quais acordava sempre com perda de fôlego, naquela noite o rapaz teve a realização que precisava.
Semanas antes, por sofrer de um resfriado intenso, acabara por deixar do lado esquerdo da cama um rolo de papel higiênico, do qual sempre se utilizava no meio da noite quando sentia alguns líquidos quentes escorrerem de suas narinas ou quando, irritado, não conseguia respirar o pouco de ar poluído que entrava pelas janelas semi-cerradas do seu quarto quente. Esse ar, apesar de poluído pelos carros da cidade e pelas fábricas da redondeza, ainda era um ar respirável e trazia uma sensação muito melhor do que aquela sensação horrível causada pela falta do mesmo.
No rádio um disco do Ney Matogrosso lembrando o que dizia sua avó e na cabeça as milhares de coisas que ouvira e falara para sua amada naquela semana de mais uma briga e separação. A preocupação com a gripe-febre-resfriado que ameaçava retornar e as preocupações com os dois empregos que demoravam a chegar e que seriam a salvação daquele relacionamento também eram presentes em sua mente.
No entanto, naquela noite, o rapaz não acordara com o incômodo dos líquidos e catarros em seu nariz, nem com o calor proveniente de seu cômodo semi-cerrado. Ao contrário, no seu sonho, enquanto caminhava em direção à casa da amada, recebendo um forte sol sobre sua cabeça, uma forte crise de espirros o acometeu, deixando-o incapaz de observar o caminho a sua frente. Enquanto os olhos lacrimejavam e o caminho ficava cada vez mais claro e pouco nítido, iam surgindo nas suas narinas pequenas pedras duras e arredondadas, que não incomodavam as narinas nem tapavam a passagem de ar, apesar de ocuparem toda a fossa nasal. Eram pequenas pedras arroxeadas em formato de gotas, como aquelas bijuterias que tanto presenciara nos colares e brincos das barracas de camelôs que sempre via em suas caminhadas pelo centrinho de seu bairro ou do bairro da amada. Pedras estas que ele sempre teve vontade de presenteá-la, mas nunca teve coragem de comprar, pois sabia que seriam logo largadas num fundo de porta jóias e substituídas pelas jóias caras que, presumia ele, o famoso amigo da amada a teria presenteado em tempos passados (ou quiçá presentes). Nesse desespero de livrar o nariz daqueles objetos que não o pertenciam o rapaz se esqueceu do caminho que percorria, se esqueceu da gripe ou das lágrimas nos olhos e simplesmente tentava entender como poderiam tantas pedras sair do seu nariz sem causar-lhe qualquer mal. Pelo contrário, elas davam-lhe alívio, prazer e até certa alegria. Não porque o rapaz já soubesse do valor comercial que tinha cada uma delas, ou como poderia ficar famoso quando soubessem que sem esforço ou arte alguma, ele, pobre-homem-professor, poderia se tornar aquele poeta federal dos seus livros, que tirava o seu “ouro” do nariz.
Nada disso!
O que o agradava era aquela sensação incrivelmente maravilhosa de sentir pequenas formas arredondadas roçarem-lhe a pele do rosto desde as parte mais internas e mucosas até atingirem, de forma lúdica, a espessa penugem que trazia em seu buço preto.
Qual foi sua alegria quando suas mãos se viram cheias de pedras preciosas, todas limpas e brilhantes, cintilantes, únicas, todas advindas de uma fonte imprecisa, ou precisamente, apontando-lhe onde habitava, até aquele momento escondida, a fonte de todas as suas riquezas.
Desesperadamente esperançoso e cheio de uma revolta contente o rapaz correu em direção ao bairro da amada, ainda com os olhos nadando em lágrimas, menos pela irritação e mais pelo entusiasmo, para mostrar a ela a novidade. No meio do caminho, porém, uma outra idéia lhe passou pela frente, com o ônibus que atravessava o cruzamento, era uma propaganda de um filme americano, onde um casal encostava testa com testa e ao fundo de seus rostos, como que em marca d’água o mesmo casal dançava em ambiente festivo. Era o que iria fazer, montar uma festa bem grande no melhor restaurante da cidade, convidaria a todos os colegas, à imprensa, o amigo da amada e, é claro, ela. E após uma primeira dança desengonçada e mal-feita, mostraria ao mundo seu segredo, multiplicaria sua fortuna por mil e ainda reconquistaria sua amada.
As pessoas com certeza estranhariam um convite tão inusitado vindo de um pobre-homem-professor, depois achariam engraçadíssimo ver um casal que mal sabe trocar os passos num dois pra lá e dois pra cá, porém, após a revelação bombástica, ninguém repararia nessas trivialidades. As mulheres ficariam encantadas com o romantismo do evento e os homens sentiriam a mesma inveja que o jovem sentia pelo seu rival mais rico, mais velho e cheio de experiências. Ninguém poderia falar mais nada dele, pois era ele quem teria o dinheiro, a fama e as experiências mais inusitadas.
Após essa reflexão o jovem se viu em casa, sentado diante do telefone, com uma caneta e papel a sua frente e os mais diversos cartões de festas sobre a mesa a fim de selecionar o salão de festas, Buffet, convidados e etc. Quanto mais ele se empolgava pensando nos preparativos, mais pedras saiam de seu nariz e mais difícil ficava bolar o plano minucioso e os preparativos para o grande dia. O sonho de conquistas e vitórias o tomava, como a gripe–febre-resfriado o tomara na semana anterior, impedindo-o de tomar as decisões que precisava tomar, como era impedido de entrar o comprimido pela boca que espirrava. Mas isso não o entristecia, pelo contrário, a sensação de bem estar que a riqueza lhe dava era quase infinita. Não pensava mais na amada, no amigo da amada (seu rival), nem no que poderia fazer com tanta riqueza e com tanta fama. Só sentia aquela sensação única, aquele orgasmo nasal, aquela coceirinha.
Acordou ensopado de suor, os olhos esbugalhados de felicidade e as calças sujas do líquido branco de seu pênis. O telefone barulha, as mãos derrubam o papel higiênico e a amada diz que os dois precisam conversar.

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